quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

FLOR DE LIZ - 1




 A
ÁRVORE E A LANÇA


 

            Certa vez em um jardim de margaridas não muito longe da Esquina da Amizade foram plantadas duas sementes diferentes das demais plantas dali. Não demorou para que brotassem, pode-se dizer inclusive que se desenvolveram simultaneamente e por isso, talvez, é que tivessem se tornado tão amigas.

            Aquela que primeiro, por uma questão de três minutos, colocou para fora da terra seu broto foi Flor; caule forte, poucas pétalas vermelhas formando um desenho que mais lembrava uma ponta de lança, muita gentileza e bom humor. Em seguida veio Digna, caule fino e longo ornado por alguns pequeninos, mas afiados espinhos, um amontoado de pétalas lilases sobrepostas que fariam inveja a qualquer rosa, determinada, inteligente e igualmente bem humorada.

            As margaridas as adoravam, aliás, qualquer ser vivente as adorariam. Sua amizade era constante e inabalável.

            Numa noite o Jardineiro abriu espaço no jardim e plantou algo que fez todas as flores gritarem de medo ao acordar: um cacto.

            - Um cacto em meio às margaridas!

            - Onde já se viu uma coisa destas?

            - O Jardineiro terá enlouquecido?

            - Será que não tinha mais potes para plantar essa coisa?

            A confusão foi geral até que a dupla Digna e Flor acalmaram os ânimos:

            - Por que essa confusão toda? Perguntou Flor.

            - É apenas um cacto - continuou Digna – É preciso saber respeitar as diferenças.

            - Isso mesmo. Lembram que também não gostaram da gente no começo por que não éramos margaridas como vocês?

            - E lembram como nossa presença ajudou a polinizar outros jardins? Atraímos mais polinizadores e ficamos todas amigas.

            - Além do mais - disse Flor - o Jardineiro não iria colocar no meio de nós algo ou alguém que pudesse nos fazer mal sem que pudéssemos nos defender. Sem contar que estão apontando e falando coisas sem nem mesmo ter falado com ele ainda.

            As margaridas viram que havia sensatez e bondade nas palavras das duas e precisavam dar ao cacto uma chance antes de deixá-lo mais isolado do que já estava. Decidiram que as duas quem falariam com ele por que foram elas que entraram como advogadas na história. E elas foram.

            Descobriram desta forma que o cacto se chamava Escudo e que foi colocado ali por que as margaridas estavam muito preconceituosas e mesquinhas nas últimas estações, e que inclusive, estava ali também para aprender a se adaptar e conviver, uma vez que está habituado ao clima isolado, seco e árido, diferente daquele jardim. Seria uma experiência enriquecedora para todos.

            As margaridas entenderam e ficaram felizes por terem a chance de se corrigirem e  agradeceram as duas por conta dessa postura e de sua coragem. A amizade delas era de fato constante e inabalável.

            Era o que se pensava...

            Numa manhã sem precedentes o Jardineiro apareceu com outra planta para aquele jardim. Ficaram todas curiosas, aflitas e até temerosas, mas já haviam aprendido a receber as diferenças com respeito. Mas a pergunta que não se calava era: o que o Jardineiro teria inventado desta vez?

            Assim que ele se afastou, todos os olhares se voltaram para o novo integrante daquele jardim: um cravo amarelo.

            Desta vez não precisou que ninguém fizesse a mediação, pois ele mesmo chegou e se apresentou para todo mundo como Miletrê. Que em segredo era uma referência as mil e três outras flores que tinham experimentado a maciez de suas folhas. Todas as margaridas, também em segredo, queriam provar essa maciez.

            Foi aí que os problemas começaram por que as flores Digna e Flor que eram inseparáveis passaram a pouco se falar. Seja quais forem os reais motivos, o que havia entre elas deu espaço a um vazio dolorido. E desde este dia elas começaram a se transformar.

            Digna começou a crescer de forma tão rápida que em poucos dias o Jardineiro teve de estender a cerca do jardim. Já Flor começou a tomar a forma de uma ninfa: uma mistura de menina e flor, entretanto suas raízes estavam emaranhadas com as raízes de sua outrora amiga.

            Pouco tempo se passou até que Flor conseguisse confeccionar uma foice com suas antigas pétalas em forma de lança. O clima no jardim era outro, pareciam todos cactos isolados como Escudo. Havia tristeza, ressentimento e raiva no ar. Ninguém sabia ao certo a origem concreta disto, mas todos sabiam que era algo real, uma dor palpável. Faltava água naqueles corações.

            Um dia Flor acordou decidida a mudar a situação, resoluta de que tinha de cortar laços para que todos pudessem ser felizes de novo, mesmo que ela própria demorasse mais um bom tempo para ficar igualmente bem. Pegou a foice começou, com delicados movimentos, a ceifar suas raízes e plantar algumas sementes de si mesma no caule da então árvore jovem que Digna havia se tornado, e no chão macio lá embaixo.

            - O que está fazendo? - perguntou a árvore.

            - Estou plantando uma saída de você! - foi a resposta.

            - Mas por que?

            - Estou cansada de esperar que me note, e me regue com a frequência que preciso

            - Mas eu não o faço? - perguntou Digna com aparente incerteza.

            - Acha que faz?

            - Acho que não... - assumiu.

            - Eu sei que não, eu sinto isso - disse Flor com os olhos marejados -  E você acha que me deixaria ir?

            - Acho que não - foi a resposta mais sincera até o momento.

            - E é justamente por isso que planto uma saída... Assim terei tempo de querer sair também.

            - É o que quer fazer?

            - É o que farei. Não estamos olhando na mesma direção. E no momento não sei responder se estou pequena demais para você ou se você é que está grande demais para mim... Não estamos olhando na mesma direção.

            Nem findou a estação e a “saída” de Flor já estava crescida e forte. Sem a ajuda de Digna, esse processo levaria mais tempo e essa era a resposta para qualquer pergunta que não tenha sido feita.

            Flor se despediu do jardim e se lançou para longe dali a procura cactos ou girassóis para dividir seus sorrisos e sua companhia. Arremessou-se para longe de seu lugar em busca de novos ares e tomou novamente a forma de flor com pétalas de lança, voando certeira na direção de corações que entendam e repeitem as diferentes formas de ser e de amar. Como uma perfeita flor-de-lis.


quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

CAÇADA DIURNA



A menina pálida de sobretudo negro protegia as vistas com uma das mãos. Detestava sair em missão durante o dia, mas desta vez não teve escolha. Seu alvo atual não dorme e não cansa. Passou a noite inteira em seu encalço. Um Escorpião Cervicus. Uma criatura maligna que ataca suas vítimas pelas costas e se gruda em sua espinha cervical tomando o controle de seu corpo e sua mente. Podem ser pequenos como ratos ou grandes como elefantes. Por sorte a caça atual era do tipo médio. Havia possuído um mago na últimas cidade por onde passou e deu bastante trabalho destruindo tudo, mas quando a energia mágica contida naquele corpo acabou a fera não teve outra escolha a não ser buscar outro hospedeiro. Não havendo magos por perto, a vítima foi um homem forte que cuidava de um lagrel, uma espécie de lagarto gigante usado como cavalo.

 

A menina chegou em um precipício que dava para um deserto e olhou lá para baixo. Pode ver o corpo do lagrel estendido entre as pedras e a areia. Um sorriso surgiu naquele rosto jovem. Seu truque havia dado certo.

 

Ela ficou de pé, abriu os braços e sussurrou algumas palavras em uma língua morta depois saltou.

 

Seu corpo caiu rápido como uma rocha, mas pousou no solo arenoso tão leve quanto uma pluma. Foi até o corpo do lagarto e com certa dificuldade levantou sua parta dianteira. Ali entre a axila e o peito da fera havia um espinho branco. Um espinho curvo. Ela o tirou com um puxão só e o limpou na areia. Em suas mãos o objeto não era tão pequeno quanto no corpo da fera. Um objeto que ela conhecia bem. Abriu seu sobretudo e o encaixou do lado esquerdo junto de outro objetos semelhantes. Uma costela. Parte de uma intrincada armadura de ossos escondida por debaixo de sua vestimenta negra. Feito para proteger, mas ótimo para atacar. Ela olhou para o céu. Quase meio-dia. Tinha de andar rápido.

 

Seguir aquele rastro não era nada complicado. Precisava apenas se apressar para anular a dianteira da fera. Entretanto, se os rastros deixados ainda eram humanos em um terreno onde os escorpiões têm vantagem só queria dizer uma coisa. Ele estava fraco. Mantinha-se apenas com a energia do hospedeiro. Era um corpo bem forte e resistente o que escolheu.

 

A fera não conseguiria cruzar o deserto inteiro a pé, sem comida e sem água. Decidiu esperar sua algoz e enfrentá-la ali mesmo. Ela também não carregava muita coisa. Duvidava que ela tivesse cantis a sua disposição. Devia estar muito cansada. Mais do que  aquele corpo. A venceria ali e voltaria para onde o sol não fosse tão castigador.

 

A menina andava em ritmo acelerado, mas contido. Sabia que sua água não demoraria a acabar, mas não poderia voltar de mãos vazias. Não desta vez...

 

Seus olhares se encontraram. A fera sorriu ao perceber o cansaço da menina que era quase uma criança. Sacou a espada do guerreiro possuído e se pôs em posição de ataque. A menina puxou duas foices de mão das fivelas atadas às suas coxas. Para a fera, aquela cena seria patética não fosse a noite inteira de provas que sua algoz apesar de ser pequena e parecer quase uma criança, tinha a experiência e agilidade que muitos mestres de armas não tinham. O ataque tinha que ser preciso e fatal. Não poderia se cansar com fintas e um esgrimir defensivo. Tinha que ser fatal, e seria. Ambos correram de encontro um ao outro. Sem grito de guera. Sem dizer palavra alguma. Sabiam que precisavam se poupar. E ambos queriam que o único som dos próximos segundos fosse de metal se chocando e um grito de agonia mortal.

 

O guerreiro segurou a arma com ambas as mãos e descreveu no ar um arco mortal com a lâmina bem na altura do peito da menina que desviou a arma com uma de suas foices. Foi necessária tanta força nesse movimento que o ataque com a segunda foice não teve o desempenho que queria. Fez um corte diagonal no guerreiro começando de um lado do peito até o outro lado da cintura. Ferimento grande, mas raso. O sangue do guerreiro espirrou nela sem lhe tirar a concentração. O guerreiro girou a espada e desferiu um golpe vertical de baixo para cima fazendo a menina se jogar para trás para não ser atingida. Tocou o chão arenoso com certa instabilidade e precisou de mais dois passos para trás para se equilibrar. Estando distante assim resolveu um golpe desesperado: arremessou uma das foices na direção do guerreiro que se desviou facilmente. O guerreiro riu da tolice cometida por sua adversária. Não teria com o que desviar seu ataque agora, ou se conseguisse fazê-lo não poderia contra-atacar sem primeiro conquistar espaço. Espaço este que ele não daria. Correu para ela e preparou novamente o golpe horizontal com toda sua força. Era o fim da menina. O fim de Malévole, a Caçadora de Espíritos. Mas espere... Que sorriso maligno é aquele no rosto dela? Será que em face da morte sua sanidade se despediu antes das vida? Não. Não era nada disso. A fera entendeu muito tarde o que se passara. Tentou frear o ataque para se desviar de um ataque pelas costas, mas era tarde demais. A foice arremessada não era uma arma perdida nas areias do deserto de Globary, mas uma arma de retorno que tinha em seu caminho de volta um Escorpião Cervicus agarrado às costas de um guerreiro quase sem forças. A lâmina o atingiu com precisão e força. A menina deu um passo para o lado dando espaço para aquele corpo cair.

 

Ela guardou ambas as foices em suas bainhas e retirou a luva da mão esquerda expondo uma cicatriz vermelha em forma de runa  e tocou o Escorpião Cervicus sobre o corpo do guerreiro desacordado. O corpo da fera se desintegrou em pontos de luminescência avermelhada que despareceram da existência. A menina voltou a calçar a luva e sorriu triunfante.

 

O homem ainda estava vivo, mas estava perdendo muito sangue.

 

- Vamos embora, Mali – disse uma voz sombria ao seu ouvido.

 

- Mas ele ainda está vivo...

 

- E vai morrer!

 

- Não posso permitir. Ele foi apenas usado.

 

- Você está fraca, Mali. Isso vai te cansar mais!

 

- Mas não vai me matar, Voliar! E se não puder confiar em você para me proteger quando estiver fraca, diga-me para que preciso de você?

 

A voz nada mais disse.

 

A menina virou o corpo do guerreiro e tocou em seu largo ferimento aberto com a mão direita fazendo o sangramento parar instantaneamente enquanto abria os três lacres de um estojo preto em forma de caixão que carregava na cintura com a mão esquerda. Novamente fez uso daquela língua morta e uma fumaça fina e azulada saiu do estojo e concentrou-se entre seus dedos da mão esquerda. Ela fechou o estojo e levou aquela fumaça até o ferimento que começou a se fechar.

 

- Espíritos matam mas também curam.

 

Arrastou o corpo do homem até um abrigo entre as rochas e o lagrel no pé do precipício. Deixou ali seu cantil e o que restou de suas quase inexistentes provisões de viagem.

 

- Vamos precisar disto depois, você sabe... - sussurrou finalmente a voz em seu ouvido.

 

- Eu! Eu vou precisar disto depois, Voliar! Mas agora ele precisa mais. Não tente vencer esta batalha perdida. Não somos inimigos. Não precisamos ser.

 

A menina começou a escalar o paredão do qual pulou. Caiu. Estava fraca. A voz nada disse. Apenas se deleitou com a vitória moral.

 

- Vamos dar a volta – decidiu a menina – Não tenho mais pressa. Nossa missão já se adiantou consideravelmente. Pegamos o quarto espírito selvagem.

 

- Quatro – sussurrou a voz de Voliar – Agora só faltam três.


sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

A GAROTA ENTRE ASPAS - 2



LÁGRIMAS DE SALIVA


Suzana chorava copiosamente há duas horas pelo fim de seu namoro de cinco anos com João Pedro, o homem de sua vida. O único que já conheceu e a quem tudo permitiu.

Na noite passada ela descobriu sua última infidelidade: uma colega nova do trabalho; moça bonita, mas simplória. Uma presa fácil. Suzana fecharia os olhos para o desvio de conduta, como fizera tantas vezes antes, afinal ele era homem e tinha suas necessidades, como ensinara sua mãe. Entretanto desta vez havia algo diferente na história: um anel, na verdade uma aliança.

Ele não a conhecia nem há três meses e havia lhe dado uma aliança!

Pior: a aliança era idêntica a que deu a Suzana dois anos antes, pois assim ele não levantaria suspeitas com aquele anel em seu dedo. Levou dois anos para dar a ela o tão esperado símbolo, e agora três meses para dar à outra! Quantas mais ele deve ter dado? Deve ter algo errado com ela, só pode ser. O que será que ela não lhe dava que ele precisava de outra? De outras? Tantas outras!

Tudo ficaria como antes não fosse a ingênua vagabunda mandar uma foto deles juntos num motel. O rosto dela não se vê, mas o dele sim. Não há a menor dúvida. Dela, apenas as curvas delicadas e as pequeninas tatuagens acima do cotovelo. Usava uma camisola idêntica a uma que ele lhe dera de presente há alguns dias! Será a mesma? Ele seria tão repugnante assim?

Suzana sentia-se um lixo, mas Estela, sua amiga de faculdade a confortava. Dizia que era melhor assim: descobrir agora do que sofrer mais tarde e não conseguir se desvencilhar de um sanguessuga de emoções. Não deveria acreditar em suas desculpas nem em suas lágrimas de saliva, disfarçadas. Deveria agradecer por ter trocado o telefone por um número tão parecido com o dele, a ponto da amante distraída mandar a mensagem para o número errado e calhar de cair em suas mãos, como a prova de que precisava para ter força suficiente para escapar dessa história sem futuro.

O futuro, inclusive, reservava o troco para caras como o João Pedro... O futuro, e certa garota que, disfarçada, confortava mais uma vítima liberta dos machistas infiéis.

 


terça-feira, 5 de janeiro de 2016

UM JOGO PERIGOSO






"Coragem e covardia são um jogo que se joga a cada instante." - Clarice Lispector


            Estavam impressionadas demais para fazer qualquer coisa. O copo então começou a mover-se sozinho pelo tabuleiro improvisado. Ninguém o estava tocando quando continuou seu trajeto saindo do tabuleiro e indo de encontro ao espaço vazio da cadeira sem dono até cair e espatifar-se no chão em dezenas de pequenos pedaços cortantes.

Todas as três amigas se levantaram aterrorizadas e, como um acordo não dito, cada uma, a seu modo tentou dar mais vida e normalidade aquele lugar: As luzes foram acesas, as velas apagadas e o aparelho de som ligado.

- Temos de fechar o contato - advertiu Cris.

- Eu é que não quero mais saber disto - respondeu Luara.

- Ninguém vai acreditar nisto - lamentou-se Juliana, a dona da casa.

- Então não contaremos a ninguém - Luara decretou.

- Tudo bem - afirmou Cris, tomando as rédeas da situação - Agora vá até a cozinha e pegue a pá de lixo e um saco plástico enquanto nós recolhemos esses cacos aqui.

- O quê!? Ir sozinha? Não mesmo!


             - Mas você mora aqui!


             - E daí? Por isso não posso sentir medo?

- Tá bom. Eu vou com você, sua medrosa.

- Vamos logo então - sentenciou Juliana - Temos de limpar isto antes que meus pais cheguem e briguem com a gente.

- Com a gente? - Ironizou Luara - Com você, isso sim.

Sempre fazendo algum contato umas com as outras. Cantando e falando alto para se distraírem e espantarem o medo, a garotas terminaram de recolher os pedaços do copo e foram embora. Não queriam mesmo ser encontradas na casa de sua amiga quando sua mãe chegasse. Seja como for, se veriam na escola no dia seguinte e ririam muito daquilo.

Não demorou para que seus pais chegassem em casa. Juliana se manteve no quarto e começou a pentear os cabelos em frente ao espelho do seu guarda roupa.

Ouviu seu pai gritar. Assustou-se.

- Querida, está aí em cima?

Era sua mãe. Devia estar bêbada para estar chamando-a de “querida”. Um frio correu por sua espinha. Provavelmenbte seu pai se cortou com algum pedaço do copo esquecido em algum canto da casa uma vez que ele tinha o hábito de tirar os sapatos tão logo fechasse a porta atrás de si. Ela ouviu passos. Pararam em frente ao quarto...

- Querida, posso entrar?

Ela respirou fundo e respondeu:

- Claro, mãe. Entre.

Sua mãe abriu a porta do quarto e entrou.

- Você pode me dizer algo sobre isto?

Ela mostrava um pedaço de vidro tingido de vermelho. Sangue. Sangue de seu pai.

- Eu... quebrei um copo hoje...

- E?

- “E” o que? Foi isso.

- Eu vi um tabueiro OUIJA improvisado jogado em cima da escrivaninha do corredor... Não quer me dizer nada?

Ela tremeu inteira. Tinha esquecido de guardar o jogo depois da arrumação.

- Esqueceu de fechá-lo corretamente...

- Você conhece o jogo do copo, mãe?

- Digamos que já participei de muitas sessões... e posso dizer que é muito perigoso.

- A senhora acredita nestas coisas, mãe?

- E você não? Não conseguiu falar com ninguém?

- Bem, na verdade aconteceram umas coisas...

- E você e suas amigas pararam no meio sem fechar o contato, não é mesmo?

- Como sabe? Já fez isso também?

- Acontece sempre, querida. Sempre.

A mãe pegou a escvova da menina, foi para suas costas e começou a escovar seus cabelos.

- Você não devia brincar com essas coisas.

- Eu sei mãe, agora eu sei. Não vou mais fazer isto.

- Não vai mesmo.

- Como assim? Jogou o tabuleiro fora?

- Não... Acontece que quando se improvisa um tabuleiro OUIJA, se aumenta a chance de contatar um demônio ao invés de um espírito e, isto é ainda mais perigoso.

- Credo!

- E não é só isto: Quando se fecha o contato você tranca o espírito ou demônio no mundo nele novamente. É importante fazer isto sempre! Principalmente quando o copo foge do tabuleiro...

- Por que?

- Porque quando o copo, ponteiro ou seja lá o que estiver sendo usado foge do tabuleiro, a entidade contatada atravessa para este mundo para assombrar e, se o contato não for fechado ela ganhará força também para possuir os vivos...

Ela olhou para o espelho e viu que sua mãe tinha uma faca em uma de suas mãos erguidas e ainda tentou gritar, mas mesmo que conseguisse não teria mais ninguém vivo por perto para ajudá-la.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

A GAROTA ENTRE ASPAS - 1

SINAIS NO ESCURO

             Ricardo acordou no meio da noite sem saber ao certo o que lhe acontecera. Estava algemado na cama de um motel barato com uma meia calça embolada em sua boca. Um cheiro forte de lubrificante íntimo por toda cama o enjoou, e a recém descoberta dormência na parte de trás de sua cintura o deixou aterrorizado.

Tentou se lembrar do que tinha acontecido ou de como chegou até ali, entretanto só lhe veio à mente a imagem de uma figura feminina – não se lembrava se uma jovem ou uma mulher –, mas ela tinha algo que saltou das profundezas de sua memória para o beiral de seus olhos: aspas tatuados acima de ambos os cotovelos. Para seu espanto e horror, na penúmbra do quarto ele as viu: As aspas brilhando violeta no escuro perto da porta entreaberta. Ela - a moça ou mulher - ainda estava ali, parada, sorrindo diabolicamente em escárnio. Lançou-lhe um beijo e então partiu fechando toda a porta levando consigo a luz do mundo.

Ele estava sozinho no escuro, humilhado e derrotado, mas sem entender ainda a história toda. Só pensava em vingança! Iria encontrá-la e acabar com ela! Não seria fácil descobrir qual das mulheres que usou, iludiu ou bateu seria a responsável por esse ataque, mas ele não desistiria nunca. Assim como nunca conseguiria esquecer a vergonha pela qual ainda iria passar quando seus amigos entrassem naquele quarto de motel com seu bolo de aniversário para a surpresa organizada com “a garota de programa” da vez, ou o ódio ao saber que suas fotos sendo deflorado foram parar na internet, partindo de seu próprio perfil de rede social, repletas de declarações de amor... Afinal, vergonha, amor e ódio é tudo o que resta a alguém que teve um encontro com a garota entre aspas.

sábado, 2 de janeiro de 2016

AO TOLO



Ao tolo
Toda frase é indireta,
Todo elogio é inveja,
Todo riso é deboche,
Toda alegria é palhaçada,
Toda amizade é panela,
Todo olhar é encarada,
Todo dedo é acusador,
Todo susurro é fofoca,
Todo talvez é desrespeito,
Todo não é agressão,
Todo silêncio é soberba,
Todo beijo é falsidade,
Todo otimismo é fantasia,
Toda esperança é ingenuidade,
Todo sucesso é recalque,
Toda igualdade é imitação,
Todo silêncio é ignorância,
Toda ausência é proposital.
                                             
Ao tolo
Este texto é pra você,
Não me leve a mal,
Mas a tolice não é eterna,
É escolha pessoal!